segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Liberto

Viro à esquerda
De qualquer artéria
Sangue que pulsa
Pelos meus passos
Pereço num fluxo,
Trajeto de esquadros.
Permeio,me furto,
Planejo, descarto
As horas passadas
Que não passam
De um tempo que
Não é mais meu
Um tempo liberto
Liberto como eu,
Como um céu que
Se explode em chuva,
E não se aceita como
Lembrança quadrilátera .
De que adianta tanto azul
Se reduzido às vidraças
De um dirigível,
De que adianta ser imenso
Se na lembrança
Não se difere
De um quadro finito.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Aurora-sangue-e-brasa

O dia é o dragão de Jorge.
Cenário de sangue e brasa
É o anoitecer.
O dragão exausto da luta
desmaia, talvez só
adormeça.
A trégua é negra
como o luto.
Jorge enganado
se pensa vencedor:
um par de olhos
estrelados,
por apenas horas,
a íris se faz rubra
refletindo
a nova peleja:
o dragão desperta
aurora-sangue-e-brasa.

Médios atos

Em meio à tragédia
Da queda de uma louça
Se mobilizam os presentes
E se livram dos cacos
Quase que com a urgência
Do assassino que oculta o cadáver.
O imediato dilata pupilas:
Se desapercebe o sangue que respinga nas paredes,
Os pedaços de louça que se calam se camuflam
E passam a morar para sempre debaixo dos móveis.
Nos desencontros da vida
Se há pressa para algo findar
Mais das vísceras dele
Se esquece aos arredores de si.

Vespertinas ou demonicidades

Não que me desagrade
o inferno externo:
Cada qual com sua demonicidade
Caminhando ou nos dirigíveis
Trafegam pelo inferno público.
Posso até dizer que gosto
da presença desses diabos
os vertebrados, os pobres, os ricos.
E não me chateio com
os sons cruéis que emitem
nem com os sons que fazem emitir.
Não me importo com toda a fumaça
das máquinas, dos cigarros alheios.
Olhando para o céu vermelho
banhado de sangue do dia que
morre pela espada de Jorge,
me retiro do inferno exterior
para o reservado não menos infernal,
vou fumar meu cigarro,
a cada trago, mais sangue no céu
mais sangue no inferno público,
mas aqui no meu inferno particular
vou estender a mão para fora da janela
comprimir a brasa contra a parede da fachada
e observar as faíscas que se libertam do cigarro
e voam pela janela para morrer como o dia
agora um cadáver já coberto
por um plástico preto como a noite.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

guar(dados)



E se dos olhos escapa a luz que não compreendo,
eu a capturo e a reservo num pote em conserva,
pois como me arranjo?
Que se por acaso da vida me acontece
uma noite puramente de sombra.
E se me sopra a palavra alta que não me cabe na palma,
eu a envolvo num pano e levo comigo
e deixo que se crie no quintal,
pois como me arranjo?
Que se por acaso da vida ache de me ser desleal o dia,
entregando manhã sem o sol e sem grito de brisa que me desperte.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

1/4


Um quarto do segundo:
da memória um quadro.
De um quase ao todo,
No âmago do nunca, um quando.
No coração, lodo.
Entre os dedos, lascas.
Dos dias, nacos.
De ti, nada.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Matutinas


Manhã-sangria:
Sol em lava
Um corte rente à fibra
Que enrijece a carne fria.

Céu líquido:
Saciar a sede dos dias
Afogar versos tardios.

Despertar viscoso:
Deserto em vertigem
Decerto vestígio
De um alvorecer morto.

terça-feira, 8 de março de 2011

Noturnas


Mastigo a noite crua:
Um gosto de sorte,
Consistência de lua.
Roubo a febre da cidade,
Que arde, arde.
Sangro o peito do silêncio,
Assombro a triste figura do sereno,
Que treme, treme.
Velo o sono do beco,
Faço do céu abrigo,
Do amanhecer segredo,
Faço do Sol um arcanjo,
Do sono um medo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Natureza Morta


Vivacidade posta à mesa
Faz-se cadáver, confunde-se
Pseudovidas com pseudofrutos
Jarras de barro com almas de vidro.

Não prometo flores,
Mas se houver
Poderá mastigá-las,
Desfrutar do sabor
Das tintas escuras.

Não prometo toalha
Ou legume, isso é detalhe.
No entanto alerto,
Para que não reclame,
Talvez haja um crânio
Se for desejo de Cézanne.

Deixe que seque
Essas palavras
Se são elas
Fruto amargo
Da minha natureza
Essencialmente morta.